Sonhos de acordar o dia
Os anos se passaram. As histórias dos sonhos divinos da bisavó Andina, não; continuavam na família, nos diários das avós, nos relatos das tias, no eterno desejo de conhecer as coisas que se perderam no tempo e não existem mais. Sempre que a família se reunia, ficava faltando um pedaço, um cheiro de história, um sabor de memória. Eram os sonhos da bisavó Andina, que muito se sabia, e pouco se conhecia. Tia Maria, que virou estrela bem novinha, brincava com as meninas, dizendo que ‘para fazer o sonho de vovó Andina, tem que ter um tempero muito especial, que só a vida ensina’. As outras, nem arriscavam, temendo não alcançar a divindade das mãos de Tia Maria. Por anos a receita ela guardou, para não perder a primazia de enfeitiçar a família. Até que um dia, se encantou e, com ela, o segredo da família, levou. Nas datas especiais, nas festas de final de ano, sempre a mesma história e o desejo de saborear os sonhos da bisavó Andina pairava sobre toda a família. Naquele fim de ano, depois do blog criado pela bisneta e chef de cozinha Mariana, com receitas resgatando a mais tradicional culinária mineira, ficou decidido que enquanto não encontrassem a receita dos sonhos da vovó Andina, nada mais seria publicado no blog. Todas, naqueles dias de chuva e ventania, vasculharam cada canto da casa velha, cada livro, cada estante, todas as anotações. Já era noite, quando na caixa de sapato cheia de cartas, no fundo do centenário baú, a meninazinha encontrou uma endereçada à irmã da bisavó Andina, que não chegou. Lá dentro, entre notícias que não se sabia, o tesouro encontrado, o segredo revelado, ao lado de uma dica de chá. Festas, choros, e muita alegria. Elas se arrumando, programando quem iria fazer os primeiros sonhos, se iriam divulgar a receita ou se permaneceria como relíquia da família, um tesouro herdado. Para o último dia das férias, depois de guardarem a receita em local escondido, ficou acordado que os sonhos seriam feitos. Na última noite, depois do jantar e do sarau improvisado, com casos, histórias e músicas de outrora, a receita seria lida, como um soneto, alimentando a imaginação de todos. Era uma noite mineira, uma família novamente reunida ao redor das melhores tradições de um povo. Estavam felizes, tendo a presença tranqüila da vovó Andina, viva em cada um, bem dentro. Quando a cantoria parou, Mariana, herdeira natural do avental da tia Maria, no fogão a lenha, mantendo a velha chama acesa, subiu, com a carta nas mãos. Foi uma comoção. Uma súbita emoção tomou a todos, quando ela ponderou que“vovó Andina guardou de uma forma muito especial sua melhor receita para nós”.Mostrou a carta com sua letra bordada. Todos choraram, sentindo a falta do que não viveram, a saudade do que não existiu... Foi aí que ela começou a ler a receita, que trazia o nome de Sonhos de Acordar o Dia... A voz tremia enquanto ela dizia: Irmã Iva, para fazer o Sonho de Acordar o Dia é preciso três ingredientes principais: muito carinho, pitadinhas de amor de mãe, e um pedacinho de uma tarde de chuva. Depois, misture com 6 réis de trigo; 2 réis de sal; 3 réis de fermento natural; 4 réis de canela; 2 réis de cravo; seis ovos frescos e uma colher de manteiga. Misture bem e frite em gordura bem quente!
Assim, todos ouviram e saborearam o gosto indecifrável, inenarrável e irrevelável dos Sonhos de Acordar o Dia, a receita da bisavó Andina, que se tornou, naquele dia, o verdadeiro gosto da poesia, um beijo do tempo, um carinho da eternidade, que alimenta a vida e os sonhos de uma família inteira, até os dias de hoje...
Petrônio Souza Gonçalves é jornalista e escritor
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